Graças à organização dos produtores da região, os vinhos finos tranquilos e espumantes da região da Campanha Gaúcha conquistaram a Indicação Geográfica (IG), que confere o direito de uso do signo que atesta a origem da bebida. Solicitada pela Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a IG foi concedida na modalidade Indicação de Procedência (IP), cuja obtenção contou com fundamental apoio da pesquisa científica.
O selo garante que o vinho daquela garrafa expressa as características da região na qual foi produzido. Para chegar a esse resultado, a bebida deve ser fruto de uma rigorosa fase de produção de uvas na área delimitada, bem como de elaboração, na qual devem ser atendidos os requisitos estabelecidos no Caderno de Especificações Técnicas, que define desde as variedades de uva autorizadas para a elaboração dos vinhos, até a etapa de sua degustação, quando um painel de especialistas avalia se o vinho pode receber a atestação de conformidade como produto da Indicação de Procedência Campanha Gaúcha.
O trabalho para obtenção do selo
A qualidade que o consumidor irá saborear na taça, atestada pelo selo da IP, é resultado de um processo que envolveu cerca de cinco anos de pesquisas, discussões e estudos de um grupo interdisciplinar sobre a região, que elaborou um dossiê, incluindo elementos científicos, gerados em projeto liderado pela Embrapa Uva e Vinho (RS). Esse trabalho fez parte do material analisado pelo INPI e que resultou no reconhecimento da IP.
“A originalidade dos vinhos da Campanha Gaúcha amplia e valoriza a qualidade e a diversidade da vitivinicultura brasileira”, avalia o pesquisador Jorge Tonietto, da área de Zoneamento da Embrapa Uva e Vinho, que coordenou o grupo temático do projeto de estruturação da IP. Ele conta que o trabalho começou oficialmente em 2013, com a aprovação do projeto Desenvolvimento da Indicação de Procedência Campanha Gaúcha para vinhos finos. “Foi um desafio diferente para a equipe, pois foi o primeiro projeto de estruturação de IG de vinhos finos coordenado pela Embrapa localizado fora da Serra Gaúcha, polo fundador da vitivinicultura brasileira. O País já conta com diversas indicações geográficas reconhecidas que a Embrapa ajudou a estruturar”, orgulha-se o cientista.
O vinho dos pampas
Localizada no bioma Pampa, a Campanha Gaúcha tem características únicas, de acordo com Tonietto. É a região produtora mais quente e com menor volume de chuvas do Sul do Brasil. As grandes extensões de áreas planas ou de baixa declividade também são um diferencial da Campanha. “Elas facilitam a mecanização na viticultura, um fator de competitividade adicional para a região por reduzir custos e possibilitar maior escala de produção”, revela Tonietto.
“Estamos muito felizes com essa conquista que representa uma qualidade atribuída aos vinhos da região”, celebra Clori Peruzzo, presidente da Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, que é a gestora da Indicação de Procedência por meio do Conselho Regulador. Ela destaca que a região conta com 17 vinícolas (veja quadro) e espera que muitas já comecem imediatamente o processo de produção de vinhos com IP. “Há menos de 30 dias terminamos a safra e com certeza foi uma das melhores dos últimos dez anos. Vamos trabalhar para que os nossos vinhos estejam no mercado o mais rápido possível”, afirma.
Peruzzo comenta que a expectativa das vinícolas é que esse reconhecimento chame a atenção dos consumidores para os produtos e motive ainda mais o turismo na região. “Já temos na Campanha nove vinícolas com estrutura para receber os turistas e tenho certeza que muito em breve outras também irão implementar em seus projetos novos serviços, dando mais espaço para o enoturismo”, antecipa.
Ela conta que os apaixonados por vinhos buscam cada vez mais experiências completas. Visitar a região, desfrutar a paisagem, visitar o parreiral no qual a uva foi cultivada e a vinícola onde o vinho foi elaborado, ouvir a história, conversar com o produtor, ouvir as explicações enquanto o vinho é degustado entre barricas ou espaços especiais para recebê-lo, são fatores que conferem um sabor especial ao vinho degustado.
“É uma imersão em um mundo tão rico, que envolve o patrimônio cultural, os valores imateriais, a paisagem construída, as particularidades do terroir e a qualidade diferencial dos vinhos. Uma experiência única”, ressalta Ivanira Falcade, professora aposentada da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e membro da equipe do projeto.
Além de atuar na delimitação da área da IP, Falcade liderou o estudo das paisagens e dos elementos naturais e culturais identitários da região que já são associados ao vinho e auxiliam no enoturismo. “Embora a viticultura nessa região tenha iniciado há muito tempo, há décadas que a cultura de videiras foi aumentando e construindo uma identidade aos vinhos da Campanha Gaúcha”, comenta.
Como as grandes regiões vitivinícolas do mundo, ela conta que a região tem desenvolvido atividades de enoturismo, criando espaços de recepção, degustação e até de enogastronomia e realização de eventos, como o Festival Binacional de Enogastronomia, realizado em Santana do Livramento e Rivera (Uruguai).
Os vinhos da Indicação Geográfica agora reconhecida refletem a composição das diversas uvas que se adaptaram à região e às condições do clima, do solo e da paisagem, na qual predominam as planícies, coxilhas e cerros. “Os dias ensolarados e as temperaturas altas de verão são elementos naturais que influenciam a maturação das uvas e deixam suas marcas nas características dos vinhos”, destaca Mauro Celso Zanus, pesquisador da Embrapa responsável pela caracterização sensorial dos vinhos da Campanha Gaúcha.
Ao longo do desenvolvimento do projeto, foram realizadas visitas às vinícolas para conhecer melhor a região e conduzidas sessões de degustações, nas quais as vinícolas apresentavam seus produtos a um grupo dos enólogos que os degustava e avaliava, buscando identificar e destacar elementos característicos. “Esses momentos foram fundamentais para catalogar a produção da região e elaborar o perfil sensorial dos vinhos. Essa base de dados fornece subsídios e informações para os avanços”, conta Zanus.
Controle rigoroso de qualidade
Os tipos de vinhos finos contemplados na IP Campanha Gaúcha são os espumantes naturais e os vinhos tranquilos brancos, rosés e tintos, com diferentes nuanças de cor, aroma e sabor, exclusivamente elaborados a partir de cultivares de Vitis vinifera.
A produção de uvas deve ocorrer integralmente na área delimitada, atendendo a limites máximos de produtividade por hectare dos vinhedos conduzidos em espaldeira, e atingir padrões de qualidade da uva para poder seguir para vinificação. Além disso, os vinhos devem atender a padrões analíticos mais exigentes e ser aprovados sensorialmente às cegas por comissão de degustação.
O reconhecimento de uma nova Indicação Geográfica
“A cobrança dos produtores da Campanha Gaúcha por ações de pesquisa na região vem de longa data. Eles me acompanham desde a década de 1990”, comenta José Fernando da Silva Protas, chefe-geral da Embrapa Uva e Vinho. “É importante dizer que a vitivinicultura da Campanha é totalmente diferente da Serra Gaúcha, nosso principal referencial”, ressalta.
Em 2010, os produtores se reuniram e criaram a Associação dos Produtores dos Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, com o objetivo de valorizar o território da uva e do vinho da região e novamente retomaram o contato com a Embrapa. “A demanda do setor produtivo organizada por meio de uma associação é o primeiro passo para a Embrapa iniciar um projeto que apoie todas as pesquisas necessárias para caracterizar a região e seus produtos, fatores essenciais para o reconhecimento de uma Indicação de Procedência”, comenta Protas.
Sob a liderança do pesquisador da Embrapa Samar Velho da Silveira, o projeto “Desenvolvimento da Indicação de Procedência ‘Campanha’ para vinhos finos e espumantes” reuniu 41 pesquisadores e mais 30 colaboradores de dez instituições parceiras, que consolidaram muitas informações sobre a região
Silveira destaca como outro importante resultado as inúmeras publicações em periódicos nacionais e internacionais, o desenvolvimento de dissertações de mestrado, teses de doutorado e ainda uma publicação que conterá um resumo com os dados do projeto e os principais resultados obtidos. “Esses documentos caracterizam essa importante região vitivinícola e apresentam informações do setor”, conclui.
“Os projetos da Embrapa são dinâmicos para atender demandas cada vez mais especializadas – hoje temos projetos de apoio às Indicações Geográficas, selecionando leveduras nativas para fortalecer o elo entre o produto e sua origem. Também estamos selecionando os melhores clones das principais variedades de videira para cada IG. Normalmente trabalhamos com projetos de três a quatro anos de duração”, declara Tonietto (Breve história das IGs no Brasil).
Onde fica a Campanha Gaúcha?
No extremo sul do Brasil, fazendo fronteira com a Argentina e o Uruguai, a região delimitada da Indicação de Procedência totaliza 44.365 km2. A Campanha Gaúcha é contornada pelas regiões da Serra do Sudeste, Missões e Depressão Central. Está localizada entre as coordenadas 29º e 32º de Latitude Sul, faixa de regiões vitivinícolas mundiais conhecidas: Chile, Argentina, Uruguai, África do Sul, Nova Zelândia e Austrália.
Ela abrange em todo ou em parte 14 municípios: Aceguá, Alegrete, Bagé, Barra do Quaraí, Candiota, Dom Pedrito, Hulha Negra, Itaqui, Lavras do Sul, Maçambará, Quaraí, Rosário do Sul, Santana do Livramento e Uruguaiana.
Segundo dados do último Cadastro Vitícola, a área de vinhedos com variedades de Vitis vinifera da Campanha totaliza 1.560 ha. Eles estão cultivados tradicionalmente em espaldeiras, o que facilita a mecanização e proporciona sanidade no vinhedo por permitir melhor circulação de ar e incidência dos raios solares nas plantas.
A Campanha Gaúcha é o segundo maior polo produtor de vinhos finos do Brasil, respondendo por 31% da produção, vindo após a Serra Gaúcha, onde se concentram 59% da produção nacional. É uma das regiões que passou a elaborar vinhos na década de 1980 e, a partir dos anos 2000, ganhou novo impulso, com aumento da área cultivada e o surgimento de diversas vinícolas na região.
Os primórdios da vitivinicultura da região remontam às reduções jesuíticas que se instalaram nas regiões oeste e central do Rio Grande do Sul e pela influência dos colonizadores portugueses do leste do estado. Atualmente, a região também é importante na produção, em larga escala, de trigo, arroz e soja, bem como na silvicultura.
Com informações de Embrapa
Vitor Pererira é Wine Judge/Sommelier Profissional